terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CRIANÇA DESAPARECIDA

Aliviei a pressão do pé no acelerador do carro e busquei a carteira de dinheiro, torcendo um pouco o nariz e a boca para o mesmo lado. Era mais um pedágio à frente. Não me incomodei por isso, pois o pensamento fixava-se em outro fato: na volta, o acento vazio naquele momento estaria ocupado por minha esposa. Os três meses dela fora de casa e dentro de hospitais estavam terminando, trazendo-me a sensação de fim de inverno e início de primavera.

No pedágio, a mão que pegou meu dinheiro, devolveu-me o recibo que teria como destino certo um lixo. Ao levá-lo ao bolso, num relance vi no verso dele rostos. Como vento, aquelas imagens sopraram o tédio e a ansiedade da viagem. Tratava-se de fotos de crianças desaparecidas. Imediatamente pensei se elas estariam muito diferentes naquele dia. Haveria nos rostinhos marcas no lugar do brilho rosado, ou expressões de dor ou angústia?

A cada pedágio, outras fotos ajuntavam-se às que já estavam bem guardadas no bolso. Reconhecer um rosto daqueles em alguém um dia seria muita pretensão minha, pois até da minha imagem no espelho esqueço num piscar de olho. Conclui que aquelas fotos, como fogo em capim seco, logo se apagariam da minha mente e não seriam muito úteis. Entretanto, não fui capaz de desfazer-me delas. Havia uma ternura cativante naqueles rostinhos.

Recentemente, minha filha pediu-me fotos dela com a família para um trabalho de escola. Rapidamente saquei algumas de uns porta-retratos. Ao deixá-las numa escrivaninha, notei perto delas os recibos de pedágio com as fotos das crianças desaparecidas. Como aqueles porta-retratos, fiquei vazio ao pensar nos pais daquelas crianças. Eles, como eu, sacaram das molduras ou albuns as fotos de um filho. A diferença é que não foi para entregar à própria criança, mas para a polícia ou algum orgão da imprensa.

E depois? Como reorganizar a vida e responder perguntas do tipo quantos membros tem a família? Enfrentar a rotina de olhar a cama do filho sempre arrumada, ou por a mesa com um prato a menos. A vida segue, mas segue como um salto em queda livre, ou como um pesado sonho onde todo esforço para acordar é inútil. Imagino que quando os recursos de reencontrar um filho esgotam-se, viver torna os dias como um oceano sem horizonte. A terra desejada só se vê por sonhos. Ainda mais quando se pensa que a criança pode estar viva, e perambulando como um fantasma, que nem o nome ou identidade consegue comprovar. Nesta tormenta, somente um salva-vidas sustenta a espera: um salva-vidas chamado esperança, loucura para uns, salvação para muitos.

2 comentários:

  1. O que mais me chamou atenção não foi a triste histórias das crianças desaparecidas, mas o assento vazio daquele momento que no momento seguinte não estaria mais. A primeira retrata da angústia sobre a impossibilidade; a segunda a esperança da possibilidade. Poder viver "de verdade" a vida além das memórias que as fotos trazem, mas por ironia do destino, a gente não vive. Geralmente vive aquilo que foi perdido! Aliás, não vive, lamenta-se.

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  2. Parabéns!!! Excelente crônica. Um ponto de vista interessante de "coisas" que no dia a dia acabam passando desapercebido por nossas vidas.

    abraços

    Marcelo Pedroso

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Muito obrigado por seu comentário, ele é muito importante pra mim.