quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A MULA E O SEMÁFORO

Tudo começou com a mudança do sítio para a cidade de Onésimo e sua mula Ambição. A saída do campo para a vida urbana é fácil de entender, mas uma mula com nome Ambição carece de explicação: Onésimo, proprietário do quadrúpede, na infância impressionou-se com a história do ambicioso profeta Balaão, que desprezou o conselho de Deus. O profeta só se deu conta de sua asneira quando, por uma ação divina, sua mula exortou-lhe com voz humana. Onésimo, assim que ganhou de seu pai o pequeno animal, não teve dúvida na escolha do nome: batizou-a de Ambição, a fim de lembrar-se de que ambição e burrice refletem-se num espelho.

No caminho para cidade, Ambição trotava sem pressa de deixar a vida do campo. Entretanto, o ritmo da cidade era como o de um remanso. Porém, um certo dia, a rotina da cidadela mudou - um dos cruzamentos centrais ganhou a atenção dos moradores. Ambição observava os olhares humanos ao alto e dedos apontando para grandes luzes multicores, que, feito faróis ficavam suspensas no ar por um esbelto poste: Um semáforo era a mais nova aquisição e sensação do município.

Entre os curiosos, Ambição ouviu uma voz mais empolgada: “Olhem, é igual ao da cidade grande!”. Ela nem se deu conta do que ouvia, mas estava sendo testemunha de uma profecia. Envolvida pela novidade e frenesi dos humanos, a admiração de Ambição pelo semáforo tornou-se um caso de paixão não correspondida. Semáforo, em sua glória, passava os dias dado ao orgulho e irreverência controlando o ritmo dos veículos e pedestres. Onésimo, ignorando tal paixão, estranhava a teimosia de Ambição em passar naquele cruzamento, apesar de ser alvo do desprezo de Semáforo.

Sem pedir licença, o progresso entrou na vida daquela comunidade, cumprindo a profecia de tornar-se cidade grande. Onésimo e Ambição retornaram à vida campestre. Os carros modernizaram-se e multiplicaram-se, porém a admiração e respeito ao semáforo minguaram. Semáforo sentia-se desprezado pelos motoristas que aproveitavam sua distinta luz vermelha para arrumar cabelos, retocar maquiagem, falar ao celular ou  paquerar. Seu rico amarelo cansou de pedir atenção. O verde, por mais justo que julgasse ser, chateava-se ao ver caras e bocas insatisfeitas com seu tempo.

Semáforo, apesar da vida agitada sob seus olhos multicores, acumulava um sentimento de culpa ao ver seu vermelho atrair assaltantes e pedintes, além de serviços não solicitados que mais constrangiam do que serviam aos motoristas. Num dia de muito sol, Semáforo teve um breve delírio, e viu entre os carros um par de olhos de mula fitando-o ao alto. Lembrou-se do olhar apaixonado de Ambição, e do tempo e valor recebido da humilde admiradora. Enquanto a visão se apagava, acendia em Semáforo uma certeza: a de que ele não passava de um burro.