quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

2011 ESTÁ NA MESA

2010, como outros anos, foi duro de digerir para uns e prazeroso para outros. Mas as fatias e bocados dele estão no fim, deixando alguns com gostinho de quero mais, e outros com cara de quem comeu e não gostou.

A mesa posta no primeiro dia de janeiro de 2010 está quase vazia, e sendo preparada para 2011. Entretanto, na última semana, ela ainda terá o melhor que se pode comprar em comidas e bebidas. Aos que estão preocupados com peso, relaxem e comam, pois o que engorda não é o que se come entre Natal e Ano Novo, mas entre o Ano Novo e o Natal.

Espero que a mesa sua no ano que passou, tenha servido você e sua familia de bons filés e manjares. Na minha, este ano teve rapadura. Foi duro descer, mas estamos saindo com os dentes inteiros e sentindo um sabor doce. A família ligou-se mais, como boa massa de panetone, e os sentimentos estão caminhando para chegar ao ponto de um bom chantily.

Apesar dos ácidos aromas e sabores no país e no mundo tentarem influenciar nosso paladar, é possível fazer prevalecer o bom tempero da comida caseira. Com ingredientes de fé em Deus, paciência e amor, chegamos bem até aqui, com amigos e familiares, prontos para estourar um champanhe.

Desejo que sua esperança seja renovada e regada pelo azeite gracioso de Deus.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CRIANÇA DESAPARECIDA

Aliviei a pressão do pé no acelerador do carro e busquei a carteira de dinheiro, torcendo um pouco o nariz e a boca para o mesmo lado. Era mais um pedágio à frente. Não me incomodei por isso, pois o pensamento fixava-se em outro fato: na volta, o acento vazio naquele momento estaria ocupado por minha esposa. Os três meses dela fora de casa e dentro de hospitais estavam terminando, trazendo-me a sensação de fim de inverno e início de primavera.

No pedágio, a mão que pegou meu dinheiro, devolveu-me o recibo que teria como destino certo um lixo. Ao levá-lo ao bolso, num relance vi no verso dele rostos. Como vento, aquelas imagens sopraram o tédio e a ansiedade da viagem. Tratava-se de fotos de crianças desaparecidas. Imediatamente pensei se elas estariam muito diferentes naquele dia. Haveria nos rostinhos marcas no lugar do brilho rosado, ou expressões de dor ou angústia?

A cada pedágio, outras fotos ajuntavam-se às que já estavam bem guardadas no bolso. Reconhecer um rosto daqueles em alguém um dia seria muita pretensão minha, pois até da minha imagem no espelho esqueço num piscar de olho. Conclui que aquelas fotos, como fogo em capim seco, logo se apagariam da minha mente e não seriam muito úteis. Entretanto, não fui capaz de desfazer-me delas. Havia uma ternura cativante naqueles rostinhos.

Recentemente, minha filha pediu-me fotos dela com a família para um trabalho de escola. Rapidamente saquei algumas de uns porta-retratos. Ao deixá-las numa escrivaninha, notei perto delas os recibos de pedágio com as fotos das crianças desaparecidas. Como aqueles porta-retratos, fiquei vazio ao pensar nos pais daquelas crianças. Eles, como eu, sacaram das molduras ou albuns as fotos de um filho. A diferença é que não foi para entregar à própria criança, mas para a polícia ou algum orgão da imprensa.

E depois? Como reorganizar a vida e responder perguntas do tipo quantos membros tem a família? Enfrentar a rotina de olhar a cama do filho sempre arrumada, ou por a mesa com um prato a menos. A vida segue, mas segue como um salto em queda livre, ou como um pesado sonho onde todo esforço para acordar é inútil. Imagino que quando os recursos de reencontrar um filho esgotam-se, viver torna os dias como um oceano sem horizonte. A terra desejada só se vê por sonhos. Ainda mais quando se pensa que a criança pode estar viva, e perambulando como um fantasma, que nem o nome ou identidade consegue comprovar. Nesta tormenta, somente um salva-vidas sustenta a espera: um salva-vidas chamado esperança, loucura para uns, salvação para muitos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O silêncio do sabiá

O Hospital das Clínicas de São Paulo tornou-se há quase dois meses meu ponto de encontro com minha esposa aos finais de semana. Ela foi um alvo de pesquisa aos profissionais de lá. O desafio foi encontrar o motivo dos transtornos que sacudiram a vida dela, e da nossa família há um bom tempo.

Deus, que tem a chave de todas as portas, abriu-nos caminho daquele complexo hospitalar. Felizmente, não só encontraram a origem do problema, como seguem tratando muito bem dela. Ainda falta responder algumas questões, mas já a deixaram em um estado que faz o sorriso vir fácil quando se olha para ela.

Num certo quarto, alem de encontrar minha esposa, da janela, observo muitos sabiás nas arvores e telhados. Nem sempre os vejo, mas em dia ensolarado, a canção deles impõe-se sobre o ruído das sirenes e agitação daquele lugar.

Entretanto, em alguns dias o “Senhor Clima” resolve esconder o céu de primavera com uma cortina de nuvens, como se fossem de chumbo. Quando não há sol, não há o canto do sabiá. O silêncio deles não soa como protesto ou arma de uma greve, muito menos inspiração vencida. A quietude declara que se sujeitam à vontade do soberano clima.  Cantar soaria irreverência, um atrevimento sem propósito. A avezinha sabe que os ponteiros do tempo marcarão o momento de voltar a estufar o peito e encher os ares com seu trinado.

Sabedoria é a professora que nos ensina que há tempo para tudo. E os sabiás conhecem o tempo para cantar e o tempo para calar. Isso me aquietou, pois estava um tanto incomodado por não conseguir escrever a mais de dois meses. Aprendi que, no meu caso, o céu fechado me fez igual a um sabiá.

Eclesiastes 3:1 - Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

É O AMOR


Para um homem falar de seus amores não é fácil. Homem gasta conversa e fala com ânimo de coisas superficiais, como churrasco, casos de polícia, do trabalho e do seu time. Rasgar a fantasia e deixar alguém perceber o que está dentro dele, só por Deus mesmo. E é por Ele que esta crônica está diante dos seus olhos. Portanto, peço licença para falar de um relacionamento que tenho tido há alguns anos.

o foi amor à primeira vista, posso lhe garantir. O sentimento veio quando decidi ter afeição por ela, mas não foi nos primeiros dias. No início, havia um interesse de fazer parte da vida dela, desfrutando de suas virtudes. Nessa época, ela não me conhecia. Isso aconteceu aos poucos, através de outros que já se relacionavam com ela.

Mas, veio o dia que assumimos um compromisso. E dessa vez, comecei diferente de como foi com as outras. Acho que por causa da idade, ou do receio de não ter outra oportunidade, decidi mudar. Nos relacionamentos antigos, eu já começava cheio dos “nãos” - não vai durar 5 anos, não preciso me entregar, não dá pra agüentar muito. Afinal, pensava: - Hoje os valores são diferentes, não precisa ser como era no tempo do meu pai, ou de meu avô.

Sei que corro o risco de ser criticado no final destas linhas, mas eu decidi querer o bem, e me orgulhar dela. Não que ela seja perfeita ou a melhor de todas, entretanto foi criada, e se mantêm sobre princípios firmes e retos, que não se vê muito hoje em dia nas outras.

Mas, nem tudo são flores. Confesso que já pensei em deixá-la, e quem sabe, ela um dia não queira mais me ter também. Mas enquanto durar, que seja intenso, de molhar a camisa. Só assim vale a pena. Não quero que seja só pelo dinheiro, na base do toma lá, dá cá. Pois quando acabar, acaba mal, com cicatrizes.

Como diz a canção dos dois filhos de Francisco: “é o amor, que mexe com minha cabeça e me deixa assim”. Acredito que essa seja a melhor forma de fazer parte da história dela. É claro que, nem se compara com o amor que tenho por minha esposa e filhas, mas aprendi a querer bem e valorizar a empresa que trabalho.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

SHOW DO SOL

Não é difícil fazer do Sol um deus. Entendo pessoas e povos que fizeram ou fazem isso ainda.

Do quintal da minha casa, tipo sobrado, tenho o mesmo privilégio de um vigia sobre um muro. Posso ver os 360 graus do horizonte. Em cada grau de sua linha tem algo para admirar e ser contado. Mas dois pontos são marcantes: onde o Sol aparece e onde se esconde. Eles se transformam em palcos que apresentam um espetáculo gratuito e diferente diariamente.

Sempre que posso, procuro testemunhar estes dois instantes. Esforço-me para ser discreto e sensível o suficiente, para que nada se perca ou interfira nestes minutos quase sagrados. São momentos com roupas de um ritual. Respiro lentamente, com os pés querendo se soltar do chão. Sinto-me quase suspenso no ar.

As primeiras luzes esparramam-se por sobre os ombros do horizonte como um manto real. Anunciam o caminho daquele que reinará no céu no dia que inicia, e delicadamente proclamam às estrelas que elas serão empalidecidas. Em poucos minutos seu arco surge. Assim que os olhos, como janelas, deixam entrar pela alma a imagem do astro em sua primeira saudação, no peito, a marcha do coração acelera. 

Depois de banhar a terra como o mar banha a praia, dando o dia, o astro segue em direção ao poente que se tinge com cores e tons ardentes. O horizonte veste-se de um bordado com véus de cera em fogo. Assim se vai o Sol, como valente para sua tenda após a batalha, deixando-me com a mão acenando, quase venerando-o. 


Soltando o ar, olho pra cima e penso: Qual foi a reação dele, quando abriu os olhos pela primeira vez, e viu Aquele que o fez, entre todo exército de astros e galáxias?

domingo, 11 de julho de 2010

VOCÊ NÃO TEM UM CELULAR?!

Dois fatos corriqueiros provocaram minhas idéias recentemente. 
Fato um: Vi na TV o Joelmir Beting dizendo:
- Este ano alcançaremos a quantia de mais de um celular por brasileiro.
Fato dois: Um corretor, falando comigo pelo telefone fixo, pede-me o número de meu celular. Respondo que não tenho. Um silêncio reina do outro lado da linha por alguns segundos. O sinal de vida volta com a frase:
- Você não tem um celular?! Ninguém vive sem celular!

O Joelmir com sua informação, e o corretor com sua opinião, pareciam um relógio cuco na minha cabeça. Se para cada brasileiro há um celular, mesmo que seja do tipo “pai-de-santo”, que só recebe chamadas, retiraram de mim a pátria amada, pois não tenho um celular. E se ninguém vive sem um deles, onde vivo então? Senti-me como o membro mais novo do clube dos excluídos deste mundo - um verdadeiro morador de caverna com um tacape na mão. Quase me fizeram correr para as Casas Bahia, e sair de lá com o último lançamento numa mão e um carnê na outra.

Passei a dormir com a pergunta: “O que faz o celular ser tão desejado pelas pessoas, como foram os bichinhos virtuais para as crianças?”. Achei uma resposta no início da humanidade, onde temos as primeiras cenas no jardim do Éden, envolvendo Criador e criaturas. Estas cenas não foram mudas, mas regadas de comunicação boca a boca. Eureka! Comunicação tá no sangue humano! E com isso, as velas dos fabricantes de celular enchem-se pelos ventos dessa necessidade latente, de chamar e sermos chamados para uma conversa. Os presidiários que o digam.

Ainda que a vaidade, status e a auto-afirmação empurrem mais ainda o consumo deles, tenho me divertido em ser uma ilha cercado de celulares por todos os lados. Não é raro eu tomar sustos com seus toques escandalosos ou exóticos, alguns até divertidos. Quem ouve sem se assustar, uma repentina risada demoníaca ou um lobo uivando? Como não dá para evitar, o jeito é acostumar com este caleidoscópio de sons e timbres.

Admiro alguns destes aparelhos que têm o poder de sequestrar e abduzir quem os atende, quase levando até sua alma pra longe de tudo e de todos. Levantam seus donos de onde estão sentados, e os fazem andar pra lá e pra cá gesticulando, geralmente falando audivelmente coisas que jamais diriam sobriamente em público.

Há poucos dias, voltando de um passeio com o cachorro, arrepiado ouvi alguém em alto e bom som dando uma ordem pelo celular:
- Me traz o 38.
Minha esperança é que ele estivesse negociando algum par de calçado.

Assista aqui um vídeo da Nokia sobre a idéia de um celular, dobrável a ponto de mudar de forma, resistente, leve, impermeável e autolimpante.

sábado, 12 de junho de 2010

O DESFILE

Por várias vezes, sentei e fiquei olhando para a página em branco no computador tentando escrever este texto. Sentia-me diante de um deserto a ser atravessado com palavras. A tarefa de falar do Sr. Shunji Nishimura para o Informativo* deixou-me apreensivo e inseguro. Pois, se corro o risco de não ser justo ao falar de quem conheço, quanto mais do mito Nishimura. Explico o porquê: o mais próximo que estive dele foi em seu próprio velório.

Buscando ideias, revirei a internet. Quase me perdi entre as mais de 17 mil matérias que encontrei sobre a vida e feitos do Sr. Nishimura. Não seria difícil parafrasear uma delas, quase todas bem escritas. Mas, não está no meu DNA artifícios deste tipo. Além disso, a memória do seu Nishimura é digna de ser honrada por hábeis escritores. Eles são capazes de talhar com palavras a vida como um escultor faz com sua obra.

Mas, “se quem vê o filho, vê o Pai”, como afirmou Jesus, quem vê a obra, vê seu criador. Os feitos de Shunji Nishimura discursam sobre ele sem ajuda de palavras. Olhar para eles nos põe mais perto deste grande homem de pequena estatura. Sua trajetória é um contraste marcante na história da nossa geração.

Se fizermos um desfile de seus feitos numa avenida, nossas pernas seriam fracas para manter-nos em pé até o final da exibição. Passariam diante de nós milhares de alunos e técnicos. Todos formados no conhecimento e no caráter, pelas escolas construídas e mantidas por ele. Seguiriam outros milhares de máquinas. Cada uma delas, criadas para ajudar a produzir mais alimentos em quase todo mundo. Guardada pelos filhos, em um grande carro, estaria sua mais cara herança: gratidão, trabalho e honestidade. Encerrando o desfile, haveria uma multidão de pessoas e famílias que desfrutam de suas empreitadas. Uma destas famílias seria a minha, e quem sabe, a sua também.

* Esta crônica foi escrita para o Informativo da Unipac nº 7 de junho de 2010



terça-feira, 18 de maio de 2010

GRAÇAS A DEUS, É SEXTA-FEIRA!

Quem procura por pessoas entusiasmadas, provavelmente não as encontrará numa longa fila. Certo? Errado. Errado se a fila for numa sexta-feira, formada após o som da sirene de fim de expediente na empresa que trabalho. Como num toque mágico, o estridente gemido traz à existência uma multidão de pessoas enfileiradas movendo-se em direção às catracas da portaria.

Os trabalhadores surgem de seus departamentos alinhando-se um após outro, formando filas extensas. Ao chegar perto delas, a sensação que tenho é que estas filas transbordam ansiedade e motivação. Penso que, das duas uma: do outro lado da portaria tem “fla-flu”, ou picanha grátis. Das duas, nenhuma. É que a sexta-feira, em quase todo mundo é assim mesmo, amada e esperada como chuva no sertão.

O entardecer da véspera traz consigo aroma e clima de reveillon. Mas o despertar da sexta-feira tem um bom humor quase globalizado. Esta sensação já foi consagrada no cinema, na música e nos negócios gastronômicos com a sigla TGIF (Thank God, It´s Friday), que é mais ou menos “Graças a Deus, é sexta-feira!”.

Neste dia observo carros, roupas, sapatos, maquiagens e sorrisos que estiveram guardados na semana. Saíram dos armários para vestirem por fora os que querem ser diferente por dentro, ou simplesmente quebrar a rotina nas próximas 48 horas. Entretanto, mesmo que nada mude, parece que o peso da rotina e das contrariedades é aliviado pelas cordas da esperança.

Sinto que a alma da nossa raça é assim mesmo. É dada a amar, viver e encharcar-se da esperança renovada diante de qualquer sinal de mudança. Cada ciclo que Deus fez para marcar os tempos, tem esta química de dispor novas oportunidades. Saturar os espaços da mente com o que traz esperança não é utopia ou ópio. Essa atitude é um recurso de quem quer construir a felicidade ao invés de viver buscando-a. São coisas do criador para sua amada criatura. Então, graças a Deus pela sexta-feira!


domingo, 25 de abril de 2010

INQUIETANTE PERGUNTA - Adeus 'seu' Nishimura

Na última sexta-feira duas palavras entraram por um dos meus ouvidos e não quiseram sair pelo outro. Elas se embrenharam com minhas idéias durante o almoço de comemoração pelo dia do trabalho aos funcionários da Jacto. As palavras nos chamavam de “honrados funcionários”, e formavam as ultimas frases de agradecimento aos que trabalham na empresa. Imediatamente a pergunta “porque honrados funcionários?” começou gravitar meus pensamentos. Mas diante dos clamores de fome do estomago, minha mente foi induzida a pensar mais no almoço do que naquelas palavras.

Entretanto a questão foi respondida na noite daquele dia. Vestindo uma camiseta com a nova logomarca da empresa estive com minha família num grande evento regional. Um deputado que andava entre os populares ao ver-me com aquela marca, estendeu a mão para cumprimentar-me, e disse ao pé do meu ouvido: “Você sabia que o seu Nishimura faleceu hoje à tarde?”.

Não sei se foi pela cara que fiz, mas o político afastou-se do mesmo modo fugaz que veio. Triste, mas surpreso lembrei-me daquelas palavras ouvidas no meio do dia. Naquela hora, senti-me um funcionário honrado ao receber a notícia da morte do fundador da empresa que trabalho através de um deputado em meio a tantas pessoas. A honra daquele patrono desceu até os funcionários mais distantes, assim como a glória de Cristo descerá sobre todos que nEle confiam.

No sábado o sol puxou uma cortina de nuvens e escondeu-se atrás delas. O dia nasceu solene, como que guardando um luto solidário aos pompeienses. No velório num ginásio, encontrei um lugar ao fundo. Ali em pé, via uma pequena multidão sentada à minha frente. Um dos filhos do seu Nishimura, representando a família, confidenciou aos presentes que seu pai não desejava que no seu velório chorassem por ele, mas que o aplaudissem.

Em seguida algo marcante aconteceu. De onde eu estava vi formar-se uma verdadeira “ola” como num estádio. Iniciada pelas pessoas nos primeiros lugares, e sucessivamente imitadas pelas de trás, num gesto contínuo como uma onda, todos se levantaram dos acentos e aplaudiram ruidosamente até chegar aos últimos. A sensação foi intensa como de um coquetel de alegria, dor e gratidão. E cresceu ainda mais quando olhei ao lado e vi, com as mãos batendo uma contra a outra, o tal deputado que na noite anterior foi um simples mensageiro para responder a inquietante pergunta “porque honrados funcionários?”.

Heron Caetano
As fotos foram obtidas do site www.estounanet.com.br




quinta-feira, 15 de abril de 2010

PEDALANDO

Acho que os dias que já vivi são mais do que os que faltam pra viver. A sensação é quase a mesma quando olho para o marcador de combustível e vejo que gastei mais da metade do tanque. Então, nada de dar voltinhas que levam a lugar nenhum. Com um olho no marcador e outro na estrada quero prestar mais atenção à vida comum e nas pessoas.

Como fazer isso bem feito ainda estou descobrindo. Comecei pela rotina do trajeto de casa para o trabalho, e vice-versa. Resolvi fazer o percurso de bicicleta. Porque? Bem, as razões óbvias são: é econômico, saudável, ecológico, e por ai vai. Entretanto, outros motivos pesaram mais que o óbvio. Uma: o acento atrás de um volante não é o que mais aprecio. Outra: A percepção de mim mesmo, passando pelas pessoas e elas passando por mim é doce. Sem vidros escuros vejo-as como sou visto.

Pedalando por um quarto de hora, sou acompanhado pelas inseparáveis linhas de trem que fendem nossa cidade. De manhã e ao entardecer, banhadas pelos raios do sol elas ganham cor de ouro, e à noite viram prata pela luz da lua. A brisa, nem sempre favorável, quando sopra traz com ela frescor e odores que dão tempero às pedaladas. Bicicleta, caminho, ciclista e brisa criam uma amizade. Conhecendo-se, ralhando as vezes um com outro, vão combinando-se e formando quase uma simbiose.

No estacionamento das bicicletas da empresa elas convivem pacificamente. Com paciência, sob sol ou chuva aguardam seus donos. Umas modernas e outras mais antigas, coloridas ou desbotadas, todas servem quem as usam como um jeans ou sapato velho que a gente não quer se desfazer.

Na ciclovia pedala-se com a sensação de estar num calçadão. Alem de outros ciclistas, divide-se o espaço com estudantes, trabalhadores, esportistas de plantão e até cães já acostumados com as rodas que passam. Mas dá pra conviver bem nesse microcosmo. O que não dá pra conviver bem é com a falta que a bicicleta está me fazendo desde que um desconhecido a levou da garagem de casa sem pedir, e ainda não devolveu.


sábado, 20 de março de 2010

SIRENE

Ele era um moço criado num cortiço de frente a uma das fábricas no Rio de Janeiro na época que se escrevia farmácia com "ph". Apesar de tudo cresceu  nobre nas afeições. Da janela de seu casebre apaixonou-se por uma jovem operária que diariamente entrava e saia da fábrica ao som de uma sirene. A pele dela era da cor da Lua, e a dele da cor da noite. Embora Lua e noite vivam juntas no céu, para ele, na terra e na sociedade daqueles anos, fazer par com ela era um sonho impossível. Seu breve e real prazer estava em ouvir o som da sirene da fábrica. Ao sinal para sair, sua amada aparecia mais deslumbrante que ao toque que a chamou para entrar. Chegou o dia que a fábrica fechou. A sirene calou-se e aquela que incendiava seu coração ele não viu mais. Para não esquecê-la e manter vivo o fogo da paixão, não teve sossego enquanto não se tornou um motorista de ambulância. Assim viveu seus dias embalados pelo canto de uma sirene. 

Para mim e para muitos que trabalham entre os muros de uma fábrica como a jovem da estória, ainda é o som da sirene que nos chama pra dentro ou convida-nos a sair. Na sua rotina, ela nos avisa a hora da refeição, do descanso, de ir pra casa e voltar ao trabalho. Enfim, diariamente ao seu som reorganizo a vida, até que um dia, ao som de uma sirene celestial, vez por todas tudo será reordenado em transbordante justiça e paz.

Muitos ao ouvir a sirene da fábrica, talvez não se sintam tão provocados como o rapaz do nosso conto. Entretanto, pra mim, ela é muito distinta e marcante. Não tem como ignorar. Escondida aos meus olhos, mas escancarada aos ouvidos, as vezes ela chora melancólica. Por vezes soa como espada - comprida e chata. No fundo, acho que ela não muda sua canção. Sinto que é o que está dentro de mim que me faz ouvi-la em escalas e timbres mutantes como vento. Percebo isso quanto estou motivado ou ansioso, pois ao seu som faço uma prece: “Bendito aquele que te despertou”... e Fred Flintstone na pedreira canta: “Yabba-dabba-duuuu”!



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

APLAUSOS

Ele veio pra mudar - e muito - a vida das empresas. Seu apelido é SPED, sigla de Sistema Público de Escrituração Digital. É a mais recente obrigação fiscal dos empresários, e quer saber tim-tim por tim-tim de tudo que entra e sai da empresa que envolva impostos. Tudo mesmo, nos mííííííinimos detalhes.

Para atendermos estas exigências no prazo de um verão, o gerente do projeto organizou uma equipe com parceiro externo, funcionários de TI e das áreas fiscais das empresas. A tarefa de montagem do cronograma foi cheia de estica e puxa como quem dorme com coberta de anão.

Imagine como se sente um lutador de sumô tendo que entrar numa calça de jóquei. Foi mais ou menos o que sentimos quando percebemos o volume de trabalho e informações pedindo para ser entregue num prazo magérrimo. Tudo isso na época mais festiva do ano, disputando agenda com Natal e reveillon.

Uma sala foi separada para o trabalho da equipe, e painéis quadriculados surgiram na parede principal para controle do trabalho feito e a fazer. Cada quadrinho seria preenchido com um “X” assim que a etapa correspondente fosse executada.

Um misto de dias quentes com o frio na barriga marcou o início da jornada. Entretanto, em pouco tempo a rotina dominou, e a adrenalina da largada dissipou-se. Os esforços começaram a parecer remadas em alto mar, até que um pincel atômico entre cinco dedos preencheu o primeiro quadrinho com o esperado “X”. Então algo inesperado começou a acontecer.

Subitamente, a cada quadrinho preenchido, aplausos vindo de todos da equipe quebravam o reinado do silêncio e da rotina. Como Deus nos surpreende com sol numa manhã fria e chuva numa tarde quente, aqueles aplausos enchiam a sala com fragrância de motivação e alegria, deixando o ar mais leve e bocas com sorriso fácil.

Aplaudir o êxito do colega, uma atitude simples e gratuita, teve a eficácia do mais caro energético ou de um hábil motivador. Uma graça, um mistério, um gesto que valeu mais que mil palavras fez a diferença. E o lutador de sumô ficou muito bem na calça do jóquei!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

SESTA. NEM SEXTA, NEM CESTA.

Nada contra ela. Pelo contrário, tudo a favor. Até combate doenças cardíacas dizem os estudiosos. Mas porque me sinto tão inadequado quando vejo trabalhadores cochilando no intervalo do almoço? Ou melhor, fazendo a sesta – nem sexta, nem cesta.

Geralmente agrupados e conectados numa rede do sono, estiram-se onde há sombra e protagonizam quase uma cena surreal. Dormem alheios a todo movimento em torno deles. Parece algo sagrado, onde os que estão acordados são os profanos, e os que dormem purificam-se.

Botina transforma-se em travesseiro, meias nos olhos, no maior estilo, servem para quebrar a luz. A sombra das arvores prestam-se de coberta de uma leveza que nem rainhas desfrutam. O comprimento e a largura do chão são as medidas da cama, deixando qualquer cama box king size com complexo de inferioridade.

Confesso que às vezes experimento uma ponta de inveja por não me sentir tão à vontade de dormir dessa forma tão simples. No fundo meu organismo pede isso, mas meu preconceito rejeita. Assim, depois de almoçar acabo encontrando mil coisas pra me ocupar neste intervalo.

Alguém já disse “porque simplificar se a gente pode complicar?”. Acho que no dia a dia faço eco a essa frase com minhas atitudes. Parece que tornar complexa a vida está em nós como o coração está no peito. Não é a toa que existe hoje nas grandes cidades negócios que oferecem casulos recheados de tecnologia e conforto por um doce sono e um salgado preço para breves cochilos durante o dia.

É certo que o sono ainda é cercado de mistérios, mas dormir é simples e essencial para a vida como a roda é para a humanidade. Não sei se um dia serei encontrado cochilando num canto qualquer. Entretanto, a partir deste ano quero ser mais simples, tendo em mente que a simplicidade como a de uma criança leva-nos à porta de entrada do reino dos céus, quando dormiremos o sono sem fim.


A sesta - Van Gogh (1890)