segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O CÚMPLICE DE LORETA

Loreta era quem mais gostava do ano novo naquela família. Na verdade, ela gostava mesmo é do início das aulas e dos cadernos novos. Filha caçula, tinha mais três irmãos que sonhavam, um dia, jogar futebol em time grande.

A história deles é curta. Um entrou na escola militar, casou moço e aposentou na polícia. Outro forjou casamento de papel passado com uma neta de japonês para trabalhar no Japão, ganhar em dólar e voltar ao Brasil. Não voltou. Morreu em um terremoto. E por fim, o mais velho, abriu um mercadinho no bairro. Prosperou e hoje é dono de casa na praia, onde passa a maioria dos dias. Nenhum virou jogador de clube de elite.

A sina de Loreta, a menina que sonhava com o primeiro dia de aula, foge do trivial. Um prazer sem explicação tomava conta dela ao abrir a primeira folha de um caderno. Olhava sua brancura riscada pelas linhas que esperavam suas palavras. Pousando as mãos sobre a folha, suspirava o cheiro de papel novo e sonhava com as letras. Ela sabia que estava diante de algo que seria mais que um amigo durante o ano, seria seu cúmplice.

Nos cantos das páginas, escrevia suas obrigações e a lida de ajudar no cuidado da casa e do avô doente.  Para dar sabor aos seus dias, cuidava de comprometer-se com as palavras em seu caderno. Combinava com elas que faria o necessário, mas quando possível, iria alem. Levar o avô para a quimioterapia era preciso. No caminho e na espera da vez, fazia algo a mais, enchendo o ouvido e coração do velho com histórias de cavaleiros e dragões libertando povos oprimidos. Na cozinha de todo dia, cortar cebolas transformava-se na arte de deitar anéis de cristais sobre saladas de encher os olhos.

Enquanto isso, a caneta ganhava as bordas do caderno e páginas escondidas traçando como fazer o melhor possível para aqueles dias. Entretanto, para o futuro mais distante, as palavras vestiam-se de profecia, pintando um quadro praticamente impossível para aquela adolescente mirrada.

Mais tarde conheceu Genésio, que fazia campanha para vereador. Genésio ganhou a eleição - e a Loreta como namorada. Noivaram e casaram enquanto a carreira do político subia como rojão de São João. Virou diplomata e foi morar com a esposa na Europa. Na terra do povo de olhos e pele clara, Loreta escreveu livros e mais livros para crianças, ao lado de seus cadernos, cúmplice do necessário, do melhor possível e do impossível.

4 comentários:

  1. O texto é tão complexo que tive que ler diversas vezes para "entender". As ações do tipo: 'suspirar o cheiro do caderno novo' ou, 'sonhar com as letras'... 'encher os ouvidos e coração'; metáforas como 'cúmplice do necessário', estão em total desuso nos dias atuais - fora da moda. Por que você não escreve coisas "mais-simples" como PPE, BI, física quântica...? Para "entender" um texto desta natureza requer "envolvimento", participar do enredo do dia a dia... Mas para quem deixou de "ser" parte dos eventos do quotidiano o que resta senão "encher" a agenda com "sou" ocupado?

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  2. Heron, gostei. Gostei tanto até porque não entendi. Achei que era o cansaço depois de uma viagem de 40 km por lugares de difícil acesso, a noite,com chuva, barro, lama para ministrar a palavra para um grupo de não mais que 8 pessoas e deixei para ler depois novamente. E....... não entendi. Li de novo com mais tranquilidade de uma forma como que se alguém tivesse passando uma mensagem codificada, criptografada e também não entendi. Continuei lendo e não entendendo. Li tanto que se eu fechasse os olhos eu mesmo perguntaria a Loreta. Permita-me dizer gostaria de ter entendido, mas para mim esse tem sido um mistério. Então procurei o coments de alguns que estão aí na rota do dia a dia, navegadores da net de um mundo "totalmente atual e dinâmico" (até por que achei que estou um pouco fora da realidade aqui embrenhado nesse sertão que tem net mas qualquer espirrinho do céu, já era) alguns sabe tudo, pessoas modernas e esses também não entenderam. Não sei realmente qual era o seu propósito mas que tem um bando de gente tentando entender isso tem e é muito legal. Tem sido um desafio mais do que os muitos anos para se discernir na música de Caetano o que era a flor do lácio. Mas sei que um dia não muito distante estaremos juntos (e é isso que vai fazer a diferença) e aí vc me explica. Abraços para um mais que meu irmão.

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  3. Legal...senti-me novamente em meus dias de colegial. Parabens.
    Telma

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  4. Caro Heron,
    Esta cronica me fez lembrar do professor Carmelino que quando chegava
    novos livros, mandava a gente primeiro cheirar o livro e conferir folha a
    folha a numeração das páginas para depois trabalhar o ano inteiro com
    ele. Era realmente um prazer receber novos livros... um prazer pouco
    estimulado hoje.
    Airton

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Muito obrigado por seu comentário, ele é muito importante pra mim.